domingo, 8 de novembro de 2009

Tortulhada


O meu pai era caçador, dos bons. O meu pai não tinha cães. Gostava de caçar sozinho, ser ele a seguir um rasto, esperar pacientemente ao pé de uma toca, descobrir uma lura. Lembro-me da ansiedade que sentia sempre que o sabia na caça, de contar os minutos até à sua chegada, nesses dias televisão e brinquedos aborreciam, a vontade de o ver chegar com a boina de lado, cigarro na boca, a arma ao ombro e na cintura a cartucheira onde pendurava os frutos da sua aventura nesse dia.
Assim que ouvia o carro corria para a porta, abraçava-o, copiava todos os seus passos e não o largava enquanto não me dizia tudo o que tinha feito e visto nesse dia, mais importante do que os animais que trazia eram as histórias que me contava, as crias que tinha visto, os caminhos que tinha percorrido, onde tinha comido a "bucha", que muros saltara e finalmente contava-me como tinha morto o que trazia e me explicava que matar assim parecia cruel, mas que era a lei da vida desde que o "bicho homem" se ergueu em 2 pernas, temos que comer, dizia, e não podemos ser cobardes ao ponto de pensar que só aos outros cabem os trabalhos sujos.
Desta forma ensinou-me a respeitar tudo o que ponho na boca, falava-me de tempos idos, para mim tão difíceis de entender, em que neste Alentejo muitas vezes padrasto os homens tinham que deitar mão ao que a pobre terra dá para poderem sobreviver.
Adorava os dias de caça e todas as histórias que eles me proporcionavam, ainda me lembro da raiva que sentia quando na escola tinha que escrever redacções contra os caçadores.
Perante este quadro podem imaginar como me senti quando um dia, meio a rir, meio a brincar o meu pai me perguntou se queria ir à caça com ele.
Pulei, gritei e beijei toda a gente perante o ar de pânico da minha mãe e o ar aparvalhado do meu irmão, devia ter ai uns 10 anos, não tenho a certeza do ano, mas nunca me esquecerei do dia, 1 de Novembro.
O prometido lá teve que ser devido e eu fui à caça, o combinado é que eu era o cão, ou seja o meu pai matava e eu ia buscar. Bem, foi como se me tivessem levado a um qualquer parque temático ( luxos que não existiam nessa altura), quem vive nas cidades tem a ideia que a malta que vive no interior nasce no meio do mato, logo tem um conhecimento intrínseco de tudo o que no campo se passa, como se enganam, pela primeira vez respirei aquele friozinho das manhãs de Novembro, pisei lama, mas lama a sério, ouvi sons que nunca tinha ouvido, comi pão e chouriço com as mãos sujas e admirem-se, até bebi água num regato...
A caça nesse dia não deu frutos, já se esperava dizia o meu pai a rir-se, com uma tagarela barulhenta por companhia afugentava tudo num raio de pelo menos 5 Km.
Mudamos então de rumo, de caçadores passámos a recolectores e fomos apanhar tortulhos.
Nesse e em muitos outros dias que se seguiram aprendi a diferenciar os bons dos maus e mais tarde aprendi também a apanhar túbaras, mas isso é história para outro dia.
Hei-de associar sempre os tortulhos ao meu pai. Também foi ele que me ensinou a cozinha-los alguns anos depois.
Há que tempos que não os comia, apesar de os saber apanhar, não faço a mínima ideia onde procura-los e pelo menos cá na terra quem os apanha é quem os come, não se comercializam. Com o tempo fui-me esquecendo do sabor deste petisco e até da sua existência.
No passado dia 1 de Novembro, ofereceram-me um saco com tortulhos, os meus olhos brilharam, não conseguia parar de sorrir, do alto dos meus 38 anos parecia uma criança numa loja de doces, ganhei o dia nesse saco de tortulhos.
Obrigada Francisca!

A receita é muito simples:

Fiz um refogado leve com azeite, cebola e alho picados aos quais acrescentei cubinhos de chouriço, estes são dispensáveis, mas apeteceu-me. Juntei os tortulhos cortados ás tiras, estes eram grandes, os pequenos ponho-os inteiros e uma folha de louro.
Como todas os fungos desta família os tortulhos são compostos essencialmente por água, logo não é preciso acrescentar, assim que começam a aquecer começam a largar liquido, deixei-os estar assim na sauna durante uns 3 a 5 minutos, temperei com sal e acrescentei uma mão cheia de miolo de pão desfeito em migalhas, incorporei bem e juntei os ovos previamente mexidos, fui mexendo bem até os ovos cozerem. Retirei do lume e polvilhei com salsa.
Não me soube a pato, soube-me a caviar!

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